A relação de dependência dos quilombolas com suas terras os torna extremamente vulneráveis às mudanças climáticas. Historicamente marginalizados pelas autoridades brasileiras, seus desafios e lutas são ainda mais invisíveis do que aquelas vivenciadas por outras comunidades tradicionais.
“A vida no quilombo é uma festa”, diz Nego Bispo, que cresceu no Quilombo do Saco-Curtume, no estado do Piauí, nordeste brasileiro. Nos últimos anos, contudo, as mudanças climáticas têm abatido os espíritos festivos nessas comunidades.
Poeta, escritor, professor e ativista político, Bispo é uma das vozes mais evidentes na luta pelos direitos dos quilombolas, povos tradicionais entre os mais vulneráveis às mudanças climáticas no Brasil.
Os quilombos surgiram séculos atrás como comunidades rurais onde escravizados podiam viver com segurança. Enquanto alguns quilombos se originaram em terras compradas ou herdadas por escravos emancipados, a maioria deles foi construída por homens e mulheres que conseguiram escapar do cativeiro.
Milhares dessas comunidades resistem até hoje, tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas. No entanto, menos de 7% delas haviam sido formalmente reconhecidos até 2018.
Atualmente, as mudanças climáticas estão aumentando a pressão sobre essas comunidades, que já se viam em situação de abandono por parte das autoridades governamentais. A seca, maior problema ambiental que enfrentam, está forçando os moradores a se adaptar para tentar manter seu modo de vida.
“Minha avó costumava dizer que eram seis meses de chuva e seis meses de seca. A colheita era rica e abundante. Tinham celeiros para o milho e barris para o feijão. Hoje, sem um sistema de irrigação, seria impossível produzir”, diz Edna Correia de Oliveira, presidente da Federação Quilombola do Estado de Minas Gerais e coordenadora nacional da Articulação das Comunidades Quilombolas.
Embora as últimas décadas tenham trazido a conquista de direitos constitucionais, na prática, ainda é difícil para os quilombos obter o reconhecimento formal. Eles estão encurralados entre desigualdades históricas e uma crise climática global que afeta desproporcionalmente as comunidades tradicionais.
Quilombo: o modo africano de vida
“Quando você chega no quilombo, nem parece que está no Brasil”, diz José Claudionor dos Santos Pinto, professor de história e escritor.
Seus pais, ambos quilombolas do estado de Minas Gerais, optaram por criar os filhos na cidade – o que não significou um afastamento de suas origens.
Jô, como os amigos o chamam, cresceu em torno do quilombo, visitando familiares e amigos, e participando de festas tradicionais. Ativista dos movimentos negros e quilombolas, ele se voluntaria para ajudar as comunidades a produzir os documentos históricos necessários para sua certificação como quilombos.
“Quando digo que nos quilombos não parece que você está no Brasil, não quero dizer no sentido de que os lugares não têm cara de brasileiros, mas sim no sentido da harmonia e comunhão que as pessoas têm com a terra. Quando você está em um quilombo, parece que está na África”, diz Jô.
Os quilombolas têm uma relação muito forte com o território e seus ecossistemas. “É a terra que te acolheu e te abrigou. Os quilombolas entendem isso. E eles são gratos a essa terra”, ele acrescenta.
Diferente das comunidades indígenas que já acumulavam séculos de conhecimento intergeracional sobre o ambiente local quando os colonizadores portugueses chegaram em 1500, os africanos escravizados se viram, de repente, em uma terra estrangeira – em todos os sentidos da palavra.
Documento publicado em junho de 2021 pela Fundação Cultural Palmares, entidade do Ministério da Cultura responsável pela promoção e preservação das tradições afro-brasileiras, mostra que 61% das comunidades quilombolas certificadas estão localizadas no Nordeste do país.
A região Nordeste é conhecida por seu clima e vegetação semiáridos. De acordo com um relatório de 2016 do Programa de Desenvolvimento da ONU, todos os estados dessa região apresentam Índices de Desenvolvimento Humano inferiores à média nacional.
Privados de liberdade e de acesso ao território, os quilombolas que conseguiram escapar da escravidão tiveram que descobrir na terra desconhecida um caminho para a sobrevivência. Esta foi (e ainda é) uma tarefa árdua. Apesar disso, as comunidades conseguiram, ao longo dos séculos, desenvolver uma relação respeitosa e mutuamente benéfica com a terra.
“Quando os africanos foram capturados em suas terras natais e trazidos para o novo continente, eles tentaram trazer uma pequena parte da África consigo para o novo terreno. Eles tiveram que se reinventar e reinventar o território”, diz Jô.
E agora, devido às mudanças climáticas, eles são obrigados a fazê-lo novamente.
Seca nos quilombos
Mesmo em uma conversa online, o clima de compartilhamento e harmonia entre os quilombolas foi palpável. Durante a chamada que durou em torno de uma hora, os membros da Federação Quilombola de Minas Gerais entraram e saíram do Google Meet em seu próprio ritmo, acrescentando comentários e novas perspectivas ao que outros tinham a dizer.
“As mudanças climáticas afetam desproporcionalmente as comunidades tradicionais que têm menos acesso à tecnologia. As técnicas de agroecologia são úteis e resolvem alguns dos problemas, mas não se comparam ao nível de recursos usufruídos pelos grandes fazendeiros”, diz Matusalém Fernandes Ferreira da Silva, diretor financeiro da Federação Quilombola.
Uma vez que se esconder era essencial para sua sobrevivência, muitos dos primeiros quilombolas optaram por se estabelecer longe de grandes rios ou outras fontes de água, explica Jô. Hoje, as terras de difícil acesso onde muitos quilombos se encontram passam por um processo de desertificação que, segundo Jô e Edna, faz da falta de acesso à água um dos maiores problemas dos quilombolas.
Dados precisos sobre os quilombolas e seus territórios, contudo, são difíceis de encontrar. Até hoje, não há consenso em torno do número exato de quilombos no Brasil. E de acordo com notícias publicadas no site oficial da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), 2022 será o primeiro ano em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística cobrirá os quilombolas em seu censo demográfico nacional.
Atualmente, o sentimento geral entre os quilombolas é de que não há políticas públicas suficientes para mitigar os efeitos das mudanças climáticas para essa população. Por isso, os quilombolas também sofrem com a migração daqueles que não conseguem mais sobreviver da terra, explica o professor Jô Pinto.
Mas a mudança climática não é a única ameaça ecológica que enfrentam. Jô, Edna, Nego Bispo e Matusalém, todos vindos de diferentes quilombos, descrevem a presença de grandes empreendimentos em terras quilombolas. Eles vão desde mineradoras e hidrelétricas até o desmatamento para monoculturas e parques fotovoltaicos ou eólicos.
“Estamos vivenciando uma infinidade de incursões capitalistas neoliberais em nossas terras – e os mais atingidos por elas são pessoas como nós, as mais fragilizadas diante do Estado”, acrescenta Matusalém.
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Séculos de invisibilidade
“Após a abolição da escravatura — que só foi possível através da pressão internacional — o Brasil deu as costas à população negra, deixando os quilombolas desvinculados da noção de cidadania”, diz Wesley Matheus, diretor do Observatório do Desenvolvimento Social de Minas Gerais, e consultor de governança e finanças do Banco Mundial.
Ele acrescenta que esse isolamento das esferas de cidadania, o qual quilombolas tiveram que enfrentar há mais de um século, ecoou por gerações – e ele permeia sua realidade até os dias de hoje.
Enquanto a constituição brasileira de 1934 já reconhecia o direito dos povos indígenas às suas terras, os quilombolas só passaram a ter o mesmo direito constitucional em 1988. E foi só a partir de 2003 que começaram a surgir políticas públicas regulando o processo de acesso a esse direito.
Segundo o site oficial da CONAQ, mesmo com a existência de tais políticas, o Brasil possui apenas cerca de 150 territórios quilombolas com posse da terra reconhecida. Um número muito baixo, considerando que existem cerca de 2.850 comunidades quilombolas certificadas, e mais de 1.500 processos abertos em todo o país.
“É uma situação tão complexa que às vezes é difícil para as próprias pessoas entenderem a que categoria pertencem – indígenas, quilombolas, ribeirinhos ou outros grupos tradicionais – e quais são os seus direitos”, diz Wesley. Um problema que, segundo ele, resulta na subnotificação desses grupos – e no enfraquecimento de seu poder político.
Wesley acrescenta que há obstáculos na compreensão das demandas dos grupos negros rurais, já que a articulação dos movimentos negros geralmente é mais forte nas áreas urbanas. Ele diz, além disso, que há uma sub-representação – e, muitas vezes, uma ausência total de representação – dos quilombolas em diferentes esferas de governo.
Uma longa história de políticas embutidas com uma perspectiva colonial branca e implementadas de cima para baixo, sejam elas sociais, econômicas ou ambientais, resultou na falta de soluções viáveis. “O Estado tem falhado em seu papel de garantir a essa população seus direitos e atender às suas necessidades específicas”, diz Wesley.
“Não há políticas climáticas e sociais suficientes para a população em geral”, diz o professor de história Jô Pinto, “e muito menos para os quilombolas”.
Bolsonaro: um retrocesso histórico
“Os quilombolas vivem sob muita pressão e muito medo. As ameaças e ataques realizados por agricultores interessados em suas terras são constantes. Eles se sentem muito pequenos e fracos para enfrentar os grandes fazendeiros”, diz Jô.
Jô acrescenta que o medo e o isolamento que fundamentaram o surgimento dos primeiros quilombos nunca desapareceram. Wesley, consultor do Banco Mundial, concorda. Segundo ele, a natureza descentralizada dos quilombos tornou-se, ao longo do tempo, um obstáculo para sua articulação nas lutas políticas.
Apesar do modesto avanço obtido na última década, com a chegada de Bolsonaro ao poder, novos retrocessos foram criados. Desde o início de seu governo, em 2018, o Brasil vem assistindo ao desmantelamento de programas e instituições relacionadas aos povos tradicionais.
Um estudo publicado em abril de 2021 pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo mostra que, no atual governo, o total anual de territórios quilombolas reconhecidos atingiu o menor número de sua história.
Segundo o relatório, o discurso antiquilombola de Bolsonaro foi colocado em prática por meio de três abordagens principais: “falta de transparência sobre a execução das políticas, esvaziamento institucional e redução de orçamentos aos menores índices da história recente”.
Enquanto isso, a Fundação Palmares, entidade federal que deveria representar as populações negras — incluindo os quilombolas — em sua luta por direitos, é hoje presidida por Sergio Camargo, que nega a existência do racismo estrutural. “A Fundação Palmares não nos representa mais”, dizem Jô e Edna.
O poeta Nego Bispo acrescenta que o desmonte dos direitos quilombolas não é exclusividade do governo Bolsonaro, já que a situação se repete em nível local.
“O governador do meu estado, Piauí, é filiado a um partido de esquerda e se identifica como indígena. No entanto, nos últimos anos, ele autorizou mineradoras e parques fotovoltaicos e eólicos a se desenvolverem dentro de terras quilombolas. Qual a diferença entre Bolsonaro e um cara desses?”, ele questiona.
Uma saída para os quilombolas
“Nossos mais velhos não brigavam por medo da repressão. Mas à medida que as gerações mais novas têm tido mais oportunidades de educação, os pensamentos começam a mudar – e as atitudes também”, diz Jô.
Por mais invisibilizadas que sejam, a articulação e o ativismo entre os quilombolas não são um acontecimento recente. O primeiro encontro nacional de comunidades quilombolas, onde surgiu a CONAQ, aconteceu em 1995.
Desde então, coordenações e federações regionais e locais, como a Federação Quilombola do Estado de Minas Gerais, da qual Edna e Matusalém são membros, vêm sendo criadas em todo o país para exigir que os direitos e as políticas públicas direcionadas aos quilombolas cheguem até as comunidades. Com essa mobilização, surge uma série de iniciativas que vão desde reuniões de mulheres quilombolas até a participação na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, COP26, em Glasgow, Reino Unido.
No entanto, a comunicação entre os quilombos ainda é falha. A presença de uma delegação quilombola no evento internacional foi pouco divulgada nas comunidades locais, diz Edna, presidente da Federação Quilombola.
“Por que não ouvimos sobre isso nas mídias sociais? E como fortalecer nossa luta quando ainda somos os últimos a saber sobre o que nos diz respeito?” pergunta Edna.
Ela teme que a presença quilombola nesses espaços seja escassa, e que as vozes de seus representantes não sejam ouvidas. Ainda assim, Edna reconhece o valor e o impacto de ocupar esses lugares.
Assim como o faz Matusalém, seu colega na Federação quilombola, quem acrescenta que, para eles, participar de eventos internacionais como a COP26 pode resultar em algo extremamente custoso.
“Economicamente, nós, enquanto comunidade, estamos em uma posição frágil. Isso intensifica as desvantagens que enfrentamos em nossa luta, pois, diferentemente de grupos financeiramente empoderados, nem sempre podemos estar presentes para levantar nossas demandas”, diz.
Sua presença nesses eventos internacionais é importante não apenas para as comunidades quilombolas, mas para o que elas representam no combate às mudanças climáticas. Wesley, consultor do Banco Mundial, explica que não se trata apenas de preservar os territórios que ocupam, mas também de seu conhecimento acumulado acerca da resiliência e da adaptação a uma terra diferente da sua.
“Se virmos os quilombolas apenas como protetores de seus territórios”, diz Wesley, “corremos o risco de produzir uma dupla exclusão, já que eles não ocupam grandes extensões de terra”.
Para a adaptação climática dos quilombolas, a esperança jaz em países estrangeiros. E para eles, como para o resto do planeta, a COP26 pode ser sua última chance.
Edna teme que os quilombos possam deixar de existir. “Aqueles de nós que não morreram de Covid, agora estão morrendo de fome. Esse Brasil tem nos matado – todos os dias”, diz ela.
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