Mercados de carbono na COP25 – e o que está em jogo para o Brasil

Em menos de uma semana, negociadores da ONU de mais de 180 países se reunirão na Espanha após um ano tumultuoso na área da política climática. Em um ano de incêndios na Amazônia e em Bornéu, tormentas extremas na Europa e protestas pelo clima no mundo todo, as negociações de Madri podem ser uma oportunidade para recuperar a confiança no compromisso internacional para lutar contra a crise climática.

Um ponto-chave da reunião será a discussão sobre os mercados de carbono e as suas regulações. Conhecido como Artigo 6 no jargão da ONU, este ponto tira o sono de muitos países e sua discussão vem se prolongando ao longo de vários anos.

Desde o final dos anos 80, a ONU tenta criar mecanismos que permitam taxar ou comerciar emissões de carbono como forma de combater as mudanças climáticas. Porém, conseguir desenvolver um sistema que agrade a todos tem se mostrado desafiador.

A ideia central dos mercados de carbono é que as emissões de carbono podem ser transformadas em créditos susceptíveis de ser comprados e vendidos. Cada crédito de carbono equivale à emissão de uma tonelada de gás carbônico, que é, mais ou menos. o que é liberado durante uma viagem de avião entre São Paulo e Barcelona.

carbon markets

Um sistema de compra e venda assim só pode funcionar em um contexto onde cada país concorda em manter as próprias emissões de carbono abaixo de determinados valores. Quando os países fazem isso, eles passam a ter um número limitado de créditos de carbono totais, que são distribuíveis entre as empresas poluidoras. Dessa forma, as empresas que sejam capazes de reduzir suas emissões podem vender os créditos excedentes para outras empresas que precisem emitir além da sua cota

Sob o Acordo do Paris, os países signatários se comprometeram a reduzir suas emissões ao longo dos próximos anos. Por meio do Article 6, os países podem comprar créditos de carbono gerados em outros países para atingir suas próprias metas. 

Embora a maioria dos países concorde em que um sistema assim pode ter grande potencial, existem ainda alguns pontos de desencontro que precisam ser resolvidos durante a reunião de Madri para garantir que o sistema funcione.

Polêmicas

Durante os anos de vigência do Protocolo de Kyoto existiu um mercado de carbono similar ao descrito aqui, chamado Clean Development Mechanism, ou CDM. Porém, hoje é quase um consenso que aquele sistema tinha graves falhas e seu impacto na redução de emissões foi muito aquém do esperado.

Os principais problemas do CDM estão relacionados ao conceito de “adicionalidade”. Para poder receber créditos de carbono, os solicitantes precisam mostrar que os projetos que querem desenvolver foram criados especificamente para o CDM. Isso garante que a redução de emissões produzida pelos projetos seja adicional, isto é, nova. Se o projeto já ia acontecer de qualquer forma, ele não supõe uma redução de emissões real, e portanto não deveria receber créditos de carbono.

Não é um detalhe menor. Se as reduções não forem adicionais e o projeto receber créditos de carbono, quem possua esses créditos estará autorizado a liberar novas emissões que não estarão sendo compensadas. O resultado seria um aumento neto das emissões de gases de efeito estufa – exatamente o contrário do que o sistema busca.

Um relatório solicitado pela Uniao Europeia em 2016 estimou que cerca de 85% dos projetos aprovados sob o Protocolo de Kyoto tiveram “baixa probabilidade” de “garantir que as reduções em emissões foram adicionais e não superestimadas.” De acordo com o relatório, a principal causa disso foi a falta de clareza inicial nas regras para calcular a “adicionalidade”.

Essa situação tem levado a várias ONGs e ativistas do clima a se opor à criação de um novo sistema de créditos sob o Acordo de Paris. Segundo essa visão, a existência de um mercado de carbono pode limitar a ambição dos países e perpetuar as desigualdades sociais, permitindo que os países ricos “comprem” uma saída à crise climática à custa dos países em desenvolvimento. Uma petição lançada pela ONG Friends of the Earth afirma:

Os mercados de carbono não funcionam. Os esquemas de limitar e vender [emissões] não têm conseguido reduzir emissões ou entregar ação climática real. Sob esquemas de mercados de carbono as emissões globais têm continuado a aumentar. Falhas intrínsecas e lacunas [no sistema] fazem que sejam inviáveis. Compensar [emissões] exige assunções cientificamente questionáveis: misturar créditos produzidos em diferentes programas significa que reduções de diferentes fontes são contabilizadas como sendo ‘iguais’. A queima de carbono de combustíveis fósseis em um lugar do mundo não pode ser compensada por meio de reduções de carbono através de ciclos de carbono naturais – não é assim que os ecossistemas funcionam.”

Para os observadores mais otimistas, os mercados de carbono podem ser uma ferramenta útil para reduzir emissões e canalizar recursos dos países ricos ao Sul global. O que é fato é que a regulação desses mercados pode ter um grande impacto sobre o futuro do Acordo de Paris. 

No momento, os pontos mais importantes do Artigo 6 a ser resolvidos são os seguintes:

Créditos antigos. Os países têm que decidir se os créditos de carbono gerados sob o sistema anterior podem ser usados no novo mercado. Por um lado, isso gratificaria os países que implementaram medidas precoces. Mas por outro, como a maioria desses créditos provêm de projetos que não resultaram em reduções de emissões reais, se eles forem incorporados ao novo sistema, o mercado ficaria com um grande número de créditos sem nenhum valor ambiental.

Dupla contagem. Um ponto crucial que deve ser resolvido é o de evitar a dupla contagem, ou seja, que os dois países envolvidos em uma colaboração para reduzir emissões contabilizem essa redução como própria. 

Aumentar a ambição. O mercado de carbono sob o Protocolo de Kyoto não conseguiu que os países aumentaram suas metas de redução. Dependendo de como for redigido o Artigo 6, o novo sistema corre o risco de se tornar um mecanismo que simplesmente desloque emissões de um lugar para outro. 

A postura do Brasil

(Escrevemos uma matéria específica sobre o que podemos esperar do Brasil na COP25. Ela pode ser acessada aqui).

Em linhas gerais, podemos dizer que o Brasil defende posições controversas no que respeita ao Artigo 6.

Brasil é um dos países que acumula mais créditos de carbono do CDM. Durante as últimas reuniões da COP, a equipe brasileira tem tentado negociar que esses créditos sejam incorporados ao novo sistema. Porém, a maioria dos países se opõe à medida. Brasil é ciente dos problemas que o uso dos velhos créditos pode gerar no novo sistema, mas quer propor medidas para garantir que seu esforço ambiental durante os anos do Protocolo de Kyoto não fique sem recompensa. Durante a COP24, Brasil sugeriu que os créditos antigos pudessem ser comprados e vendidos no mercado novo, mas com um preço fixo, o que evitaria a desvalorização dos créditos novos. Na época, a proposta não foi muito bem recebida.

Um outro ponto polêmico no que o Brasil se viu envolvido durante a COP do ano passado foi a dupla contagem. O jornal inglês The Guardian e outros veículos afirmaram que a proposta do Brasil para o Artigo 6 abria a porta à possibilidade da dupla contagem, ou seja, que as emissões que um país vende a outro pudessem ser contabilizadas por ambos.

Essa dupla contagem seria permitida unicamente aos países em desenvolvimento durante durante os primeiros anos do Acordo de Paris, sob a condição de que esses países se comprometessem a corrigir esse desequilíbrio no futuro por meio de novas ações de redução de emissões. A maioria dos países se opõe a uma ideia assim já que, entre outras coisas, dificultaria muito a monitorização da redução de emissões.

Mercados de carbono

Mas alguns dias depois da COP24, Thiago de Araujo Mendes, membro do Ministério do Meio Ambiente, escreveu uma carta ao jornal inglês The Guardian afirmando que a posição do Brasil tinha sido “distorcida”, mas sem aportar mais detalhes. É importante lembrar que, na atual fase de negociações, ninguém quer ser acusado de defender a “dupla contagem”, termo que virou quase um palavrão.

O que está em jogo

Para muitos observadores, um acordo ruim no Artigo 6 seria pior do que nenhum acordo e poderia comprometer o futuro do Acordo de Paris. Se o novo mercado permite que existam créditos de carbono que não estão ligados a reduções reais de emissões, os objetivos climáticos dos países podem virar letra morta. 

O Artigo 6, mais do que qualquer outra coisa [nas negociações do clima] tem o potencial de causar um dano real,” afirmou Felipe de Leon Denegri, um dos negociadores da Costa Rica, em entrevista à Climate Home News.

A justiça climática também tem que ser levada seriamente em consideração no Artigo 6. No sistema anterior, os países ricos investiram em projetos de energia limpa nos países em desenvolvimento para poder poluir além da sua cota de emissões. Sem salvaguardas que evitem abusos, esses projetos milionários podem aumentar a pressão sobre as populações locais, inclusive provocando abusos dos direitos humanos.

Existe também um grande desafio em criar as condições adequadas para que os mercados de carbono sejam uma ferramenta para diminuir as emissões totais. No passado, permitiu-se que projetos que não reduziram (e provavelmente aumentaram) as emissões fossem monetizados na forma de créditos de carbono. Alguns desses projetos incluem intervenções para aumentar a eficiência (e portanto a vida média) de centrais de carbono muito poluentes, e a construção de centrais hidrelétricas, que emitem grandes quantidades de metano na sua fase de implementação. Além disso, muitos desses projetos já estavam planejados com muita antecedência, o que significa que não foram desenvolvidos como alternativas menos poluentes, e portanto não produziram reduções de emissões reais. 

Esperemos que os países tenham aprendido as lições do passado e sejam capazes de chegar ao melhor acordo possível para o meio ambiente.